segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Morre o homem que quebrou o Brasil

Ao destruir inflação nos EUA, Volcker tornou dívida do Brasil impagável
Presidente do Fed na década de 1980 elevou juros a 20%, o que provocou colapso econômico em emergentes
FSP, 9.dez.2019 às 17h54
Paul Volcker, que derrotou a inflação descontrolada como presidente do Fed (Federal Reserve), o banco central dos Estados Unidos, na década de 1980, morreu aos 92 anos no domingo (8), em casa, depois de uma longa doença.
Ele se tornou um dos presidentes do Fed mais impopulares da história, ao elevar as taxas de juros a até 20%, a fim de derrotar a disparada da inflação que consumia a economia dos EUA na década de 1970. Mas suas ações tiveram êxito, fazendo dele um dos dirigentes de banco central mais bem-sucedidos da história.
Se o ortodoxo Volcker se tornou conhecido por conter o último pico inflacionário dos EUA, no Brasil e no restante da América Latina sua gestão provocou impactos econômicos e políticos ainda mais dramáticos.
A brutal elevação dos juros que promoveu no final dos anos 1970 produziu uma igualmente extraordinária elevação das dívidas externas de inúmeros emergentes —ou países em desenvolvimento, como se dizia então.
No caso brasileiro, a dívida em moeda estrangeira, equivalente a cerca de 25% do Produto Interno Bruto até 1979, saltaria para mais de 50% do PIB nos anos seguintes, tornando-se impagável.
O colapso financeiro interrompeu bruscamente o ciclo de crescimento econômico vivido durante a ditadura militar, até ali amparado em crédito externo para investimentos em infraestrutura. A crise ajudou a apressar o processo de redemocratização.
Entre os inícios de 1981 e 1983, o PIB encolheu 8,5%, na maior recessão já medida no país —no recente período 2014-16, a queda foi de 8,1%.
Na tentativa de estimular exportações e obter divisas, o moribundo regime militar levou a cabo uma desvalorização da moeda nacional. A consequência foi a disparada da inflação, só contida em 1994 —quando também se normalizou o pagamento da dívida com os credores externos.
Além do restabelecimento da democracia, a década perdida de 1980 fomentou a ascensão do sindicalismo liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, que se levantou contra a perda de poder aquisitivo dos trabalhadores organizados.
Volcker fez parte do governo americano, sob administrações republicanas e democratas, por quase três décadas, em papéis de orientação da política monetária e fiscalização do sistema financeiro dos Estados Unidos.
Ele era presidente do Fed de Nova York quando o então presidente dos EUA, Jimmy Carter, o indicou para comandar o Fed, em agosto de 1979, depois do mandato breve e malsucedido de G. William Miller.
Filho de um administrador municipal, Volcker nasceu em Nova Jersey em 1927. Depois de estudar na Universidade de Princeton, na Universidade de Harvard e na London School of Economics, começou a trabalhar para o Fed de Nova York como economista em 1952, e cinco anos mais tarde foi contratado pelo Chase Manhattan Bank.
No começo da década de 1960, ele trabalhou por alguns anos no Departamento do Tesouro e depois retornou ao Chase, até se tornar subsecretário de assuntos monetários internacionais no Departamento do Tesouro, no começo da gestão Nixon, em 1969. Naquele cargo, ele desempenhou papel-chave em desmantelar a conversibilidade do dólar dos Estados Unidos em ouro, em 1971.
Volcker assumiu o Fed no mais longo período de inflação alta sustentada que a economia americana já sofreu. A inflação anualizada chegou a um pico de 14,7% nos 12 meses encerrados em março de 1980 e nos 12 meses encerrados em abril de 1980.
O embargo árabe do petróleo, no começo da década de 1970 exacerbou outras forças inflacionárias, e a política monetária frouxa adotada para fomentar o crescimento terminou por levar os preços a altas ainda maiores.
Ao mesmo tempo, o crescimento econômico se estagnou, criando uma combinação desastrosa chamada estagflação.
Volcker acreditava que colocar a inflação sob controle era uma precondição para a prosperidade.
“Estávamos em um caminho no qual a inflação estava se autoalimentando, e, quanto mais esse período durasse, mas difícil se tornaria enfrentá-la”, recordou em entrevista ao The Wall Street Journal em outubro de 2018.
“Não se pode imaginar os Estados Unidos operando com uma taxa de inflação de 20% ou 25% ao ano. Era isso que as pessoas temiam.”
Na gestão de Volcker, o Fed apertou a base monetária dos EUA, causando uma disparada nas taxas de juros. A economia passou por duas recessões durante o primeiro mandato dele no banco central, com o desemprego chegando a um pico de 10,8%, em 1983.
Os agricultores protestaram, indo de trator à sede do Fed e bloqueando o acesso a um dos edifícios. Os operários da construção civil enviavam tábuas a Volcker pelo correio, implorando que ele baixasse as taxas de juros para que a construção de moradias fosse retomada.
“Reduza as taxas de juros / Salve empregos / Juros altos demais”, estava escrito em um desses pedaços de madeira.
“Mas não me arrependo daquilo”, disse na entrevista. “Não conheço nenhum outro conjunto de ações que fosse viável, em termos políticos ou econômicos.”
A tarefa de conter as pressões inflacionárias se provou “muito mais difícil do que eu teria imaginado”, recordou Volcker.
“Demorou mais que o previsto”, disse. “Fiquei um pouco espantado. As primeiras medidas tomadas... ninguém se ergueu para elogiar. Todo o mundo dizia que o Federal Reserve continuava fazendo bobagem.”
Foi só no terceiro trimestre de 1982 que ele sentiu confiança em ter controlado a inflação, disse Volcker. A taxa de inflação caiu para cerca de 3%, pelo final de seu primeiro mandato de quatro anos como presidente do Fed.
O presidente Ronald Reagan apontou Volcker para um segundo mandato em 1983, mas também indicou membros para o conselho do banco central que discordavam do presidente do Fed e chegaram a derrotá-lo em uma votação, em determinada ocasião, decidindo por um corte na taxa de juros —um raro revés.
Em “Keeping At It”, seu livro de memórias publicado em 2018, Volcker descreveu como o chefe da Casa Civil de Reagan, James Baker, com o presidente assistindo em silêncio, ordenou que o presidente do Fed não elevasse as taxas de juros antes da eleição de 1984.
Volcker, que não tinha intenção de elevar os juros, de qualquer forma, não contou a colegas ou legisladores sobre o episódio. Baker diz não se recordar do acontecido.
Em 1987, Reagan apontou Alan Greenspan como sucessor de Volcker.
Depois de sua carreira no Fed, Volcker se tornou presidente do conselho do banco de investimento Wolfensohn & Co., de Nova York e se aposentou depois da fusão entre a instituição e o Bankers Trust.
Aposentado, ele foi indicado para diversas posições internacionais importantes. No final da década de 1990, ele presidiu um comitê encarregado de investigar contas e outros ativos dormentes em bancos suíços, pertencentes a vítimas do Holocausto.
De 2000 a 2005, ele presidiu o Comitê Internacional de Padrões Contábeis, desenvolvendo normas mundiais de contabilidade. Em 2004, Kofi Annan, o então secretário-geral da ONU, apontou-o como presidente de uma comissão encarregada de investigar corrupção no programa da ONU que permitia ao Iraque, que estava sob sanções, vender petróleo para comprar comida.
Depois dos 80 anos, Volcker voltou a ter influência na Casa Branca. O presidente Barack Obama o cortejou no começo de sua campanha eleitoral, em 2008. Volcker ofereceu conselhos ocasionais ao candidato e em seguida declarou seu apoio a ele em janeiro de 2008, antes do início das primárias democratas. Depois da eleição, Obama o apontou para presidir o Conselho Presidencial de Recuperação Econômica, formado por executivos.
Volcker era visto como um conselheiro raramente usado —mas o ávido pescador declarou que isso não o incomodava.
“A forma pela qual eles me usam cabe a eles decidir”, disse Volcker ao The Wall Street Journal em 2009. “Para mim, existe um conflito entre ir pescar e ficar à disposição... posso terminar me ocupando mais do que gostaria.”
Mas seu papel se tornou mais claro com o passar do tempo. Depois da crise financeira de 2008, Volcker se tornou um dos principais proponentes da dissolução dos bancos grandes e de proibir bancos comerciais de conduzir atividades de alto risco, como transações de investimento de risco com capital próprio da instituição. Para Volcker, esse papel era importante.
Liberar os bancos para que eles pudessem investir capital próprio em transações de risco “ferraria os clientes”, disse Volcker ao The Wall Street Journal. “Bancos não deveriam fazer esse tipo de coisa.”
Ele disse que o mais forte baluarte contra qualquer crise futura continuava a ser manter regulamentações prudentes.
“É muito difícil tomar conta da loja”, disse Volcker. “E minha resposta à grande preocupação sobre outra crise financeira é que o melhor é ter regulamentação firme e dura. Mas, é claro, assim que as coisas melhoram as pessoas tentam desmantelar a regulamentação.”
A primeira mulher de Volcker morreu em 1998. Ele se casou com sua assistente, Anke Dening, em novembro de 2009.
Tradução de Paulo Migliacci

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