quarta-feira, 11 de março de 2020

Canuto: Usar crise do vírus para mudar o teto seria desastre

'Usar crise do vírus para mudar o teto seria desastre'
Risco é jogar fora de novo trajetória de ajuste, diz Canuto
Por Thais Carrança – De São Paulo VALOR 11 mar 2020
Usar a crise do coronavírus como justificativa para quebrar a regra do teto de gastos seria um desastre, avalia Otaviano Canuto, ex-diretor-executivo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). "Corre-se o risco de jogar fora mais uma vez uma trajetória de ajuste, que é essencial neste momento", afirma ele, hoje pesquisador-sênior não residente do centro de estudos Brookings Institution, de Washington.
Para Canuto, a crise do coronavírus afeta o Brasil por quatro canais: a falta de componentes na indústria, a redução da demanda chinesa por exportações, a queda no preço das commodities e a aversão ao risco. Nesse cenário, o economista acredita que as atuais projeções de crescimento para o país em 2020, em torno de 1,5%, parecem razoáveis, mas avalia que há muitas incertezas envolvidas nessas estimativas.
Residente na capital americana, o ex-secretário de Assuntos Internacionais da Fazenda avalia que a trajetória de recuperação da crise gerada pelo covid-19 deve ser em "U", e não mais em "V", como esperado inicialmente, quando se apostava numa retomada muito rápida. Ele pondera, no entanto, que ainda não é possível saber qual será a duração desse vale, em que a crise se mostra mais profunda. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Valor: A atual crise global, na sua avaliação, é um fenômeno de impacto limitado ou pode perdurar?
Otaviano Canuto: De início, a expectativa era que ela fosse uma evolução em forma de "V" e depois isso passou para um "U" [com uma recuperação não imediata]. Se isso vai deixar sequelas, afetando o desempenho num prazo mais longo, ou seja, uma crise em forma de "L", eu não creio. Essa crise de agora não é similar à de 2008, por exemplo. No sentido que uma crise financeira global, assim como qualquer outra grande crise financeira, tem efeitos duradouros na estrutura de fundamentos da economia. Podemos ter subestimado o grau de ruptura que a crise associada ao coronavírus pode ter. Mas ela em si não altera os fundamentos da economia. Então, nesse sentido, sou propenso a acreditar que é uma crise em forma de "U", ainda que não se possa ver com clareza quão longo vá ser o período lá de baixo na curva.
Valor: No que esta crise é diferente da crise financeira de 2008?
Canuto: O covid-19 se encaixa naquilo que o [investidor e estatístico Nassim] Taleb definiu como um "cisne negro". Um fenômeno raro, muito inesperado, de forte impacto e que só será entendido e avaliado depois que acontecer. Até por não se tratar de algo que se encaixe, não há parâmetros que economistas possam estimar, variar e introjetar em seus modelos. Portanto todas as estimativas estão sujeitas a revisões.
Valor: Esta é uma crise de oferta ou de demanda?
Canuto: O coronavírus combina choques de oferta e de demanda. Há a súbita paralisação de pessoas e de produtos. A China passou por uma parada súbita, como a Itália está vivendo agora. Então há um choque de oferta e, num contexto de cadeias de valor integradas, ele se transmite ao resto do mundo. Também há um choque de demanda, particularmente sobre serviços. Uma terceira dimensão do choque é de incerteza ou confiança, que favorece a busca de refúgio em ativos seguros.
Valor: Há possibilidade de uma recessão em âmbito global?
Canuto: Tudo vai depender de qual é o limiar que a gente passa a chamar de recessão. Já há bastante tempo, na economia global, se fala de recessão quando o crescimento vem abaixo de 3%. Porque, como o crescimento global é uma média, e isso inclui países em desenvolvimento com ritmo potencial de crescimento a taxas acima da dos países avançados, não faria sentido vir com essa história de dois trimestres com número negativo. Então, classicamente, 3% ou 2,5% de crescimento global sempre foi o patamar considerado de recessão. Creio que neste ano isso vai acontecer.
Valor: E como este cenário todo afeta a economia brasileira?
Canuto: Para além da difusão da doença no país, o Brasil já está sentindo o efeito através de quatro canais de transmissão. Choque de oferta no sentindo de carência de componentes. Da mesma maneira, há também um choque de demanda sofrido pelo país, pois a China é o maior destino de exportações do Brasil. Um terceiro canal é o dos preços de commodities. E um quarto é o da incerteza e da busca de refúgio.
Valor: Em que medida o crescimento brasileiro pode ser reduzido? O senhor avalia que o novo patamar de estimativas de crescimento, que agora estão próximas de 1,5%, é isso mesmo ou pode ter novas revisões?
Canuto: Com o olhar de hoje, é o que me parece razoável esperar. Agora, vai evoluir, para melhor ou pior. Em situações em que você tem impactos econômicos de variáveis não econômicas e desconhecidas, a projeção econômica está contingente às informações que você tem em determinado momento no tempo. Neste momento, me parece que o 1,5% de crescimento do PIB neste ano é um prognóstico mais sólido, não por acaso tem havido uma convergência para isso.
Valor: Se parte dos problemas vem de choques de oferta, como a política monetária, que atua sobre a demanda, pode ajudar?
Canuto: A política monetária não compensa choques de oferta. Por outro lado, o componente de choque de demanda tem efeitos particularmente agudos sobre segmentos mais vulneráveis, como, no caso da China, as médias e pequenas empresas com baixo acesso a financiamento. Foi importante no caso chinês o alívio monetário para evitar que o choque de oferta se propagasse através de ondas de fechamento e sufocamento de empresas mais vulneráveis. De certa maneira, quando Fed decide antecipar a decisão de corte de juros, não é porque ele vai ser capaz de com isso reverter ou evitar eventuais choques de oferta nos EUA. Mas corta a propagação desses choques sobre empresas.
Valor: É o caso no Brasil?
Canuto: Sim, eventualmente, o corte de juros adicional pode ajudar ainda mais a quem sofreu o impacto inicial do choque. Mas tem dois lados aí. Isso pode piorar a saída de capital do país, aumentar a perda de atratividade dos papéis brasileiros. É uma questão de avaliação entre os dois pesos. De um lado o alívio propiciado pela redução adicional de juros, de outro, o potencial efeito disso através do dólar. É uma decisão que terá que ser feita pelo Banco Central em relação a isso. Há argumentos de um lado e de outro. Mas não é qualitativo, tem que fazer contas.
Valor: E quanto à política fiscal?
Canuto: Lá vem o pessoal tentando aproveitar mais uma vez a oportunidade para ver se, com a desculpa do coronavírus, [dá para] derrubar o teto de gastos. Pelo amor de Deus, não. A melhor coisa fazer é acelerar as reformas.
Valor: Há espaço para algum tipo de ampliação de investimento?
Canuto: Uma coisa fundamental neste momento é evitar que a crise do coronavírus se constitua numa desculpa para quebrar a trajetória de ajuste fiscal que tem estado em curso. A melhor maneira de encontrar espaço fiscal para investimentos é acelerar reformas para tornar possível, dentro dos limites do teto, a mudança na composição do uso dos recursos públicos sob a forma de investimentos. Não mudando o tamanho do envelope.
Valor: Qual é o problema de flexibilizar o teto de gastos?
Canuto: Corre-se o risco de jogar fora mais uma vez uma trajetória de ajuste, que é essencial neste momento. Nós entramos na crise em que entramos em grande medida por causa de duas graves "doenças". Uma combinação de anemia de produtividade e obesidade do setor público. Então começamos a tratar da doença da obesidade fiscal e agora, antes de chegar numa posição mais tranquila, vamos jogar fora? Esse é o risco que se corre. O nosso objetivo fiscal não acabou. Então usar a atual situação com o coronavírus como uma justificativa tirada da cartola para quebrar essa regra seria um desastre.
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Risco é jogar fora de novo trajetória de ajuste, diz Otaviano Canuto, ex-diretor-executivo do Banco Mundial e do FMI

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